Poeta
Recheio
Andei sem gosto pelo desejo. Não sei ao certo desde quando o fastio me ronda, mas estava prestes a perder o paladar.
Ironicamente, meus “inimigos” se aperfeiçoavam na arte de salivar. Eles se tornaram gourmets e se dizem bons cozinheiros e confeiteiros. Minha avó sempre dizia “minha filha, temos que rezar pelos amigos e pelos inimigos... e, de preferência, o terço doloso - o maior de todos”.
Para aqueles que não acreditam que temos em volta seres preferindo a nossa não-existência, posso dizer que, quando eles voltam à minha vida, sempre vêm todos de uma vez; uns no áudio, outros no vídeo e a minoria no áudio-vídeo – as tais coincidências caóticas previsíveis. Ainda bem que, dos cinco sentidos, são apenas dois, senão o “doloso” seria pouco.
Mas, voltando à degustação... confesso que perdi o recheio. Quando aqueles que me amavam me mordiam tinham que se contentar com a casca – ainda que saborosa! Mas não se saciavam, porque eu não passava do entorno, próxima do retumbe do eco, próxima da desmaterialização do desejo.
Quando a saudade do preenchimento vinha, preferia os sabores mais açucarados, que me provocavam ânsia e repunância. Acho que foi de tanto ouvir “doce como a infância”, enquanto a minha – no máximo – teve “pitadas” de açúcar. Não que eu prefira o fel, mas agora estou a salivar pelos sabores de espanto, de inespera, de surpresa. Atraio-me por aqueles que só pelo cheiro são capazes de provocar os maiores desatinos, a baba escorrendo, os olhos serrados, os melhores momentos.
Para aqueles que julgam que o pecado anda me rondando... prefiro dizer que estou condenada perpetuamente às delícias da carne, do sangue de todos que, como eu, preferem o deleite, o excesso, a inadvertida culpa do que agora somos.
Em busca do autoconhecimento, parei de me perguntar sobre coisas óbvias... que venham me rechear todos os sabores mundanos ainda que desconhecidos.
Ela
Presa à maldade inabitável do Éden
Redentora da fogueira
Bastarda dos céus
Menina apocalíptica errante
Comensal da fruta
Geradora do bendito e maldito fruto
Finalista de uma falsa estação
Heroína da forjada espada
Marcada no tempo
Insegura na noite
Herdeira da morte
Livre do dia
Amazona de asas sem antecedentes
Gélida e verticalmente decaída
Em praça pública
Nas labaredas de seu corpo
Pernas em Cruzada
Já sinto a pulsação nas minhas pernas por mantê-las demasiadamente cruzadas; “andam” obsoletas, desnecessárias e inúteis. Não dou valor e tão pouco as respeito. Esqueci-me de sentir até por aonde elas podem me levar...
Reparando bem... meus “caniços” (apelido infantil) estão perdendo a musculatura viçosa, a forma torneada. E eles que já pedalaram tanto. Deslocamento zero diria o meu, mais amado, professor de Física. Mas não me importa que eu volte para o mesmo ponto de partida e sim a distância que me separa da chegada. Fatalidade: minha distância é igual ao meu deslocamento.
Sinto. Elas estão pulsando. Percebo. Elas estão desesperadas a querer me impulsionar para um longo caminho de uma “Cruzada pagã". Elas me dizem que terei de matar, esquartejar e viscerar muitos Medos e me manter em vigilância constante até chegar ao meu inevitável volver - fazendo a primeira viagem ao novo desconhecido do meu eu.
Direita volver | Esquerda volver
Mal ditas palavras da "direita"
Viram promessa em bocas que hoje vingam
Não esquecendo Pasquim... "Quem avança é cachorro"
Barris de petróleo versus barrigas vazias, mentes vazias
O buraco negro é mais "abaixo", é aqui mesmo seu astronauta
E ilusoriamente, em um mundo numérico, chegaremos ao infinito
Ao poeta vagabundo
Deixa existir
Mesmo que eu saiba que ali não tem
Onde o impulso elétrico não pode alcançar
Mas deixa
Deixa que exista em nós
Eu ainda prefiro a mentira poética
Do que a verdade sem licença
Eu ainda te prefiro na música de amor
Embora nem a música e nem o amor existam
Eles são, meu bem, irritantemente imateriais e cerebrais
Nos braços de Morfeu
Quem perde o sono... deixa de alimentar um sonho
Padece, desertor da realidade
Confunde-se com a escuridão da luz
Que brilha tão hipnotizante, quanto um sonho
Como quem desperta com raios de sol tão delicados
Que permitem contemplar a poeira em valsa
E o olhar próximo, nunca antes, tão amendoado
Já não se sabe mais se é sonho, sono ou realidade
Lupus
A violência, a mim, é fruto
Domesticada seja a violência!
Mas o lobo se domestica?
Dê migalhas ou perderás a mão!
Manga longa ou manga curta?
Uma pedra pode até esmagar um extremo
Mas enquanto ao outro?
E quanto ao tempo?
Não sou estrela do mar
Corra pra longe da minha essência!
Vamos... corra!
A mão fez-se migalha
"Naquela mesa"
Por que a gente sente?
Por que a gente sente algo além da gente?
Dizem os sábios miseráveis
Aqueles que em dia de chuva dão aulas de psicologia barata em botequins
Que nossos impulsos elétricos não se satisfazem a sós
Eles se sentem altamente entediados com seus amores-próprios
Então... não mais que abruptamente
Eles se jogam
Despencam de meio ou de dois metros ou mais de altura
E se lançam em voos planares
Feitos fibra óptica
Perfurantes de outros corpos
Daí... ficamos presos a essa tal conexão
Nem que seja por alguns instantes ou por toda uma vida
Se eu não me engano... é isso!
Janeiro adentro
Tantos são os caminhos que me levaram a trilhar outros tantos (des)caminhos. Preparar a teia e centrar-se requer um tanto de intuição sobre a arte de me inclinar o suficiente, para que meus olhos e a luz solar, num ato de conjunção plena, contemplem as cores do indizível.
Aventurar-me demanda uma dose cavalar de utopia/poesia para fazer de uma estrada, um labirinto; para me perder e me achar; para partir e regressar – num ato gentil de amar. Como quem compartilha as pegadas e de quem fica à espera do expectar miragens da linha tênue do horizonte.
Desta vez não foi só a lua, a Terra e o sol que convergiram para um suntuoso encontro. Era eu lá... de tanto querer, mas sem imaginar estar. Era eu, a lua, o mar, a areia, o farol e os 12 segundos de escuridão. Longínquos de uma imensidão e atraídos pelo rastro da via láctea.
Era eu lá... manifestando a apreciação dos meus sentidos lúcidos e corpóreos a tatear mentalmente toda a fecundidade daquele momento. E era tanto amanhecer e tamanho entardecer que não havia espaço para o desatino incrédulo das horas.
Abri-me inteira em flor como sendo a própria alucinação de mim. Por um instante desacreditei da minha própria verdade, mas logo todo aquele momento fez-se em sentido profundo. Foi o “eu posso, eu quero, eu consigo” mais sutil de toda a minha existência.
Não sabia se havia mais mar fora ou dentro de mim... foi o encontro de duas águas arrebatadamente salgadas – que se mesclaram, sem saber ao certo aonde iriam chegar.
Por que de amor?
jardineiro do sol e de outras estrelas
chuva que vem vindo,
encharcada de amor.
pássaro do sol...
em mim fincaste,
a golpe de pétalas,
uma resplendorosa amabilidade
do essencial visível.
talvez se fale da travessia do mar,
talvez seja a mesma que emerge
das profundezas do rio,
do lago, da poça, do copo, da gota, da lágrima.
embora a palavra escrita
não sendo a melhor expressão espontânea
de humanidade...
me coube, por reflexão, duas alternativas:
o silêncio da palavra escrita,
a falta do dizer e o dizer da falta
e o silenciamento de tudo aquilo
em que um dia se decrepitou
pelos portais do tempo.
portais providos de fortalezas
criados pela memória.
inútil e nocivo atraso das horas,
que por vezes resplandecem no tempo
que mesmo em si não cabem,
resplandecem no presente
que por ser involuntário
exigem esforço elíptico/centrípeto.
não me cabe outra vez pensar no que fora
ou no que poderia ter sido,
porque tudo o que foi... está
e o que agora está... já é ressignificação.
não estamos mais lá,
tudo o que fora vivido já não está mais “existível”.
não mais há:
a inexorável existência do pouco,
do bom que fora lúdico,
dos poemas que foram tantos,
dos momentos de amor e sombra,
de todas as neuroses e alucinações,
de todas as farsas e as frustrações,
de todas as crenças e mágoas,
de todo silêncio e toda fala,
de tanta luz e escuridão,
de todo medo e pouco sim,
de todo apreço e todo não,
de toda pressa e distância,
de toda loucura e todo alento,
de nada mais que todo amor,
de nada além desse amor,
desse fogo, desse sol,
dessa disparada, desse sim, desse não.
não, não de tanto sim,
pelo começo, meio e fim.
águas cristalinas
em correntes avassaladoras,
o tempo, o azul, a rasura e a poeira em valsa.
por que se sente muito mais do que se consente?
o que está antes do sol? o que vem depois da chuva?
esse amor que não causa dor, porque vive
no que de sagrado fora,
no que de forte, quente, pungente insônia.
eu sei por que um pássaro engaiolado canta,
porque mesmo numa gaiola,
seu canto é livre
e por que livre... canta, encanta, alucina, sonha.
deixemos de ser predadores;
canta, rasga o silêncio,
morremos para recomeçarmos.
a pena não é mais dolor,
masmorra indelével da noite,
vislumbramos pétala por pétala
por que tinha de ser pena?
mas se fora pena,
não mais existe
ali não tem.
grata pelo que foi.
olhos tristes, amendoados,
os mais doces e mais estelares
a fantástica doce via láctea.
por que de amor?
porque a terra gira à revelia do amor,
porque amores que matam nunca morrem.
De Sol e Mar
Como ser Sol?
Como ser ao mesmo tempo Mar?
O que veio primeiro?
O Sol está para o Mar
Assim como o Mar está para o Sol,
Porque se participam!
Reza a lenda...
Que numa determinada manhã de verão
O Sol majestosamente emergiu do Mar
E enquanto o Sol mais brilhava e resplandecia
Foi colorindo pétala por pétala
A flor da maresia!
Aos poucos, o Sol aquece o espelho do Mar
As suas camadas mais profundas
E dá vida à vida que nele habita
E que infinitamente se multiplica pelo seu calor
O mar salgado e doce contem toda sede do Sol
E em ímpetos de saciá-lo, lança-se em ininterruptas ondas...
Até suas gotículas encharcarem os raios de Sol
Sim, eles se tocam
Eles se sentem
Passam o dia a se amar!
Num eterno nascer, aquecer e saciar!
Depois de tanto o Sol se embebecer e ser feliz com o Mar
Ele se rende as suas profundezas!
Formando assim, a cada dia, a Expressão do Sol Poente
O Sol dorme dentro do Mar!
Estrondo
O que se torna inabitável ao silêncio?
Mudo
Surdo
Sem vibrações
Frequência zero
Pedra n’água
Ar sem vento
Concha em pedaços
Há barulhos demais em cartazes de PS
Há guerras demais em jornadas nas estrelas
Do que aqui
Pare, e não escute
Sobre a cruz de Santo André
Estou
O trem desliza sem assobio
Tempestades sem raios
Não escute...
Feche os olhos
Despersonifiquei
Bem longe, eu vou
Onde agora é tudo aquilo que não há
Atrito e queda
Queda e atrito
Em silêncio
Traço|Ponto de Desequilíbrio Parte 1
Ele estava outra vez na ponta de um sossego que beirava o acaso. Pensamentos diários de aborrecimento e ausência, agora faziam parte de outros dias.
O que ele era, quem ele era na ausência luminosa de seu quarto? Ainda podia escutar uivos, atritos de rodas com asfalto, algumas vozes. Retornou para seus pensamentos mornos, sem ideias geniais, sem margens sonoras de um sonho sem sua presença. Não... nem os seus sonhos contam a sua história. Acho que ele anda sofrendo mais pela carne rompida de um dedo do que por aqueles que de fato teria saudade.
Se saudade é negar a solidão, então, ele se “via” no escuro, na borda fria do “aceite como estás”.
Traço|Ponto de Desequilíbrio Parte 2
Ele anda, por hora, sem seus sonhos demasiados conscientes (nada protagonizados... nada novo!). As expectativas, cá ocidente, são bem mais interessantes do que além oriente. Talvez não morra apedrejado ou não saia nas primeiras páginas “sensacionais” com cinto de couro, embutido de TNT.
Mas ele sempre morre, tantas vezes cedo, de outras formas menos radicais, menos patrióticas, sem defesa e luta. Repudia e aterroriza seus próprios pensamentos, por acreditar em sua condição circense. Vigília entre uma e outra piscada longa. Sabe de antemão, através de sua bola de cristal, o que o futuro iminente reserva.
Ele sempre é o primeiro a fugir. E será lembrado, e logo, esquecido - por devastar suas miragens próximas com seu medo. Ele não lembra, sequer retêm na retina outros dias de insônia. Apenas observa os próximos segundos, enquanto imóvel, adormece.